Meio Ambiente

Corrupção não é maior desafio em combate à tráfico de animais silvestres

Relatório ignora questões práticas e aprovadas por diversas entidades em prol de vítimas de traficantes

Por: Robis Nassaro

Talvez seja polêmico, mas não dá para apenas aplaudir o relevante estudo divulgado no mês passado sobre tráfico de animais no Brasil pela Transparência Internacional, Freenland com apoio do Departamento de Estado dos Estados Unidos, por meio do Gabinete de Assuntos Internacionais sobre Narcóticos e Aplicação da Lei (INL). O relatório em questão é “A lavanderia da fauna silvestre: como riscos de fraude, corrupção e lavagem de dinheiro viabilizam o tráfico de vida silvestre”. E há ressalvas porque embora corrupção de agentes públicos seja um tema relevante no Brasil, está longe de ser a principal questão no combate ao tráfico de animais silvestres como apontado no documento.

 

Sim, esse estudo é bem feito porque ele traz dados sobre cada fragilidade que existe no processo brasileiro de controle da gestão da fauna silvestre que pode implicar em tráfico de animais, envolvendo sistemas eletrônicos e de marcação de animais, deficiências dos órgãos e muitos outros aspectos, mas não justifica o destaque dado à corrupção de agentes.

 

De fato, o trabalho tem muito mérito ao ressaltar não apenas a necessária atenção ao recorrente tema tráfico de animais silvestres, mas outras formas de detectar esse crime, quando ele envolve grandes traficantes e aqueles que se associam para traficar animais silvestres. Também há um achado neste trabalho que é o apontamento claro das fragilidades dos sistemas eletrônicos que usamos atualmente.

 

Também achei muito interessante a linha da investigação policial do “siga o dinheiro”, estratégia dos Estados Unidos muito eficaz e que permitiria aqui no Brasil a imputação de crimes financeiros e de associações criminosas, com penas mais severas do que as previstas aos crimes envolvendo animais silvestres. Avalie: com nossas penas ridículas para esses traficantes, qualquer forma de destruir o raciocínio criminoso de que crime compensa é um alento.

 

Volto aqui na questão da corrupção. A impressão ao ler os números assustadores de animais traficados, é a de que o envolvimento de agentes públicos e outras pessoas, como empregados de zoológicos e criadouros, se espraia de modo tão generalizado que dificilmente alguns deles escapa e esse seria o motivo fundamental para a dimensão do problema. Errado!

 

Conheço o sistema como poucos porque atuei nele por mais de 30 anos e raramente vi corrupção envolvendo agentes públicos e em empreendimentos de fauna no estado de São Paulo (zoológicos e criadouros, por exemplo). E mais: quando isso aconteceu, rapidamente foi solucionado, com os respectivos reflexos penais adequados a cada caso.

 

Não quero de forma alguma reduzir o trabalho. Quero, de fato, não demonizar os profissionais – agentes públicos ou não – porque posso afirmar que a regra geral é que eles não estão o tempo todo sofrendo assédio para obter alguma vantagem ilegal para favorecer o tráfico de animais silvestres.

Esses números absurdos do tráfico decorrem mais de incapacidade operacional dos órgãos de combatê-lo, pela magnitude do território nacional e demanda de usuários, do que qualquer outra justificativa.

 

Outro ponto de atenção no relatório no tema corrupção de agentes é a indicação equivocada, a meu ver, de que a Resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente nº 457, de 25 de junho de 2013, fomenta corrupção de agentes públicos para o tráfico de animais silvestres. Para quem não a conhece, essa norma trata do depósito provisório de animais silvestres para os casos em que haja justificada impossibilidade de destinar os animais apreendidos para jardins zoológicos, fundações ou entidades assemelhadas. Tem outros assuntos nela, mas o foco aqui é o depósito de animais ao próprio autuado.

 

Eu explico. Essa norma foi aprovada após muitas discussões nas câmaras técnicas e plenária do CONAMA, em comum acordo com organizações não governamentais presentes à época no conselho e, também, com o Ministério do Meio Ambiente e IBAMA, dentre outros órgãos federais. A iniciativa de protocolá-la foi da ONG de proteção ambiental Mira-Serra. Ela foi uma construção envolvendo diversas partes bastante colaborativa e efetivamente consensada. Eu sei porque estava lá como conselheiro do CONAMA representando o Conselho Nacional de Comandantes Gerais das Polícias Militares e Bombeiros Militares do Brasil – CNCG – PM/BM.

 

Tenho certeza de que a aprovação dessa norma só aconteceu porque ela tinha o objetivo muito adequado de regulamentar como e em que circunstâncias um animal silvestre apreendido ficaria provisoriamente sob depósito com o autuado até que o agente público e a sua instituição tivessem o suporte necessário para retirá-lo.

 

Essa destinação provisória já acontecia no dia a dia da fiscalização, por meio da apreensão formal do animal e a destinação também formal ao próprio autuado, através de depósito fiel, antigo instituto do Direito Processual Civil. Além disso, após 2008, com a edição do Decreto federal nº 6.514, de 2008, foi publicado o inc. I do art.107, que diz “os animais da fauna silvestre serão libertados em seu habitat ou entregues a jardins zoológicos, fundações, entidades de caráter científico, centros de triagem, criadouros regulares ou entidades assemelha das, desde que fiquem sob a responsabilidade de técnicos habilitados, podendo, ainda, respeitados os regulamentos vigentes, serem entregues em guarda provisória”. Exatamente essa norma, Resolução Conama 457 de 2013, é o regulamento vigente que passou a disciplinar o depósito provisório de animais silvestres.

 

Vocês podem estar se perguntando: por que um animal apreendido ficaria com o próprio autuado em depósito provisório? As respostas são várias.

 

Muitas e muitas vezes o agente está com um veículo quebrado, seu veículo não tem como transportar adequadamente os animais, a quantidade de animais é muito grande para o veículo, o CETAS local está fechado, o local de destinação não tem vagas para novos animais, o animal precisa de cuidados que o CETAS não tem condições de atender, a distância de centenas de quilômetros e o estado físicos dos animais não permitem um longo deslocamento imediato, enfim, são diversas circunstâncias que apenas quem convive com a fiscalização pode compreender como essa norma é importante ao dar segurança ao agen te de fiscalização e mais, lembre-se das dimensões continentais do Brasil.

 

Enfatizo que a resolução definiu a destinação provisória dos animais como situação absolutamente excepcional, não abrindo válvulas de escape para a manutenção definitiva de animais silvestres aos próprios autuados, inclusive o parágrafo único do art. 5º da resolução vedou expressamente a proibição do depósito de animais silvestres, vítimas da maus-tratos ao autuado, sendo essa situação a mais comum encontrada em animais silvestres traficados.

 

Enfim, essa norma dá segurança ao agente e em muitas situações fáticas protege os animais apreendidos, regulamentando os procedimentos a serem adotados, não havendo qualquer justificativa para indicá-la como um fator de facilitação à corrupção. Penso que achar que essa norma facilita corrupção de agentes para o tráfico de animais silvestres é desqualificar por completo todos os profissionais e Instituições que se debruçaram muitos anos na sua elaboração até a aprovação no âmbito do CONAMA.

 

Por outro lado, o relatório indica a necessidade de unificação das bases de dados para a maior efetividade do combate ao tráfico de animais. Creio que todos concordamos com a necessária unificação das bases de dados para conhecimento e aperfeiçoamento da fiscalização, entretanto, isso não implica em suprimir ou indicar que os sistemas criados pelos estados, como o GEFAU mencionado, são uma das fontes de fragilização do controle de fauna.

 

O GEFAU – Sistema de Gestão de Fauna paulista – é mais ágil e eficiente do que o federal, sem falar que ele permite adequações modulares, sempre que necessárias, para atender especificidades de controle do Estado, o que não ocorre quando o ente está vinculado a um sistema fechado, cuja gestão é federal e depende de autorização, também federal, e recursos federais para ajustes, por vezes simples, visando solucionar uma deficiência de interesse estadual.

 

Eu participei da elaboração do GEFAU, enquanto membro da Polícia Ambiental paulista. Ele foi criado exatamente para suprir as deficiências do sistema federal e mais, as dificuldades de acesso aos dados federais. O pano de fundo da unificação dos sistemas é que ele deve ser sempre uma via de duas mãos e não só do estado para a união, o que por vezes se observa ainda acontecendo e justifica a criação de sistemas próprios. Neste caso, bastariam ajustes para que os sistemas se conversem. Aliás, em termos de tecnologia da informação, tudo é possível, desde que haja recursos e vontade política.

 

Reforço que a unificação da base de dados estaduais com o sistema federal e vice-e-versa é um assunto que não está associado apenas à discussão do tráfico de animais silvestres e sim em todos os sistemas cujas pesquisas são essenciais, com ênfase na investigação policial, inclusive para ser possível seguir o dinheiro.

 

Há uma questão que é mais central no tema tráfico de animais silvestres que não foi abordada diretamente no relatório que é a autorização nacional para criação e manutenção de animais silvestres por particulares. No Brasil a atividade é considerada legal, desde 1967 e a regulamentação existe desde então. Mais frágil no começo e mais rigorosa agora, pese a necessidade reconhecida por mim e muitos outros colegas de aperfeiçoamentos.

 

Perceba, sempre onde há regularidade haverá pessoas tentando fazer irregularidades. O caminho é a proibição total? Acredito que é a sociedade brasileira que precisa renovar sua atenção ao tema e decidir novamente se quer manter ou não atividades envolvendo animais silvestres com particulares. Apesar dos números do tráfico, penso que a tendência nacional é o sim, pelo menos neste momento cultural brasileiro em que a gaiola é um dos itens mais comuns nas casas das pessoas.

 

E se a sociedade, por meio de seus representantes legais, permanece autorizando o uso particular de fauna silvestre, seja como animais PET ou até mesmo de suas partes e objetos, deve-se reavaliar novamente a regulamentação existente. Por exemplo, a criação amadorista de passeriformes (passarinhos), indicada neste e em diversos relatórios, inclusive pelo IBAMA, com uma possível relação direta com o tráfico de animais silvestres.

 

Essa atividade tem regulamentação especial e serve para que particulares interessados criem e, se quiserem, participem de torneios de canto e beleza com seus passarinhos silvestres. Conforme os relatórios, exatamente as espécies mais procuradas para a criação amadorista de passeriformes são as espécies mais traficadas no Brasil.

 

Quem conhece essa atividade sabe que ela gera ou pode gerar renda aos seus associados, por meio da chamada transação de passeriformes (um criador transaciona seu animal com outro criador), porém, em geral, não se reconhece oficialmente essa vertente comercial, porque isso implicaria em pagamentos de tributos e a inserção da criação amadorista em outras normas de regulamentação.

 

Ninguém consegue “meter a mão nessa cumbuca” e ela tem sido muito discutida no Conselho Nacional do Meio Ambiente há décadas, especialmente quando se propõe a ampliação das listas PET (de animais silvestres que podem ser comercializados como animais de estimação). São milhões de passarinhos e centenas de milhares de criadores no Brasil, o que exige muito dos agentes públicos responsáveis pelo SISPASS (sistema federal de gestão e controle da criação amadorista de passeriformes no Brasil) no âmbito nacional e estadual.

 

Esse é um dos temas espinhosos que precisa ser debatido. Ou se mantem a atividade, indicando-se que ela é sim uma vertente comercial, regulamentando-a dessa forma, ou se ajustam as regras da atividade amadorista, ou enfim, se proíbe totalmente a criação amadorista no país. O que precisa é uma definição nacional que acabe com a ambiguidade da atividade e, a partir daí, caso permaneça, que fomente a gestão e controle, mais efetivos reduzindo ao máximo qualquer espaço para que ela sirva para traficar animais silvestres. Nesse aspecto, as indicações feitas de fragilidade dos sistemas no relatório são muito coerentes.

 

Aqui uma experiência pessoal. A maioria das vezes em que atuei apurando fraudes em criação amadorista, encontrei anilhas falsas, anilhas corrompidas, passeriformes declarados como geração de outros pássaros sem que estes fossem seus pais, passeriformes sem anilhas e passeriformes machucados com anilhas reais colocadas quando já adultos. Tudo isso é feito por criadores criminosos para dar um ar de legal ao que era ilegal. Imagine em termos de escala, a quantidade de animais envolvidos!

 

Sempre me perguntei por que tantas fraudes nessa atividade? A resposta é óbvia. Porque ela tem interesses comerciais que geram demanda por animais oriundos diretamente da natureza (tráfico de animais silvestres), ensejando a necessidade de fraudar sistemas para obtê-los e assim continuar ganhando dinheiro (transação de passeriformes) sobre o manto de uma criação amadorista. Claro, há muitos criadores de passeriformes que seguem todas as normas, entretanto, por um azar daqueles que fiscalizei, a maioria estava irregular.

 

Um último ponto que merece atenção e que acredito que é também um dos principais fatores de incentivo ao tráfico de animais é a necessidade de criminalizar a conduta e patamares de gravidade (penas) diferenciados para os traficantes.

 

Atualmente não há um crime intitulado traficar animais silvestres na Lei de Crimes Ambientais. O que está tipificado no art. 29 da lei são condutas de matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar, vender, expor a venda, exportar, adquirir, guardar, ter em cativeiro ou depósito, utilizar ou transportar. E o pior, as penas são ridículas como eu falei, sendo de 6 meses a 1 ano de detenção e multa, independentemente da quantidade de animais apreendidos.

 

Essa situação da lei penal ambiental com certeza incentiva o tráfico de animais silvestres porque vale a pena pagar cestas básicas por ter sido preso com centenas de animais silvestres e continuar realizando essa atividade ilegal e cruel. Não é por outro motivo que há muitos e muitos casos de criminosos reincidentes nesse crime.

 

Então, um dos pontos mais importantes nessa discussão é ter uma conduta típica para o tráfico de animais silvestres e penas mais graves para os traficantes, como já ocorreu com os maus-tratos de cães e gatos, que teve a pena elevada de 3 meses a 1 ano de detenção para 2 a 5 anos de reclusão. A partir dessa alteração, o criminoso flagrado só poderá ser solto por juiz de direito em audiência de custódia (não cabe fiança) e responder em varas criminaise não mais em juizados especiais.

 

Atualmente isso não ocorre com o traficante de animais silvestres, que nem pode ser preso em flagrante, muito menos responder a processo criminal. O que acontece é ter contra ele um mero termo circunstanciado que tenderá a ser resolvido nos juizados especiais criminais com o pagamento de algumas cestas básicas e poucas horas de serviços à comunidade. Será que traficar animais silvestres vale a pena no Brasil?

 

Neste texto eu procurei enaltecer o importante trabalho realizado no relatório “A lavanderia da fauna silvestre: como riscos de fraude, corrupção e lavagem de dinheiro viabilizam o tráfico de vida silvestre” e acrescentar em alguns dos seus tópicos, outra visão que, na verdade, pretende contribuir com a avaliação crítica do problema. Por meio dessas rápidas reflexões podemos perceber como o tema é complexo e quantos enfoques ainda poderiam ser abordados para acrescentar à discussão.

De qualquer forma, estamos todos juntos pela perspectiva de que o tráfico de animais silvestres é cruel com os animais, prejudica a biodiversidade do Brasil e precisa ser estancado.

Robis Nassaro – Doutor em Ciências Policiais e pesquisador da Teoria do Link.

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